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domingo, 13 de março de 2016

A ARTE IMITA A ARTE

Produzidas na primeira metade do século 20, réplicas de esculturas icônicas da história da arte estão expostas em São Paulo ao alcance de um bilhete único

TEXTO: BRUNO B. SORAGGI
FOTOS: ALBERTO ROCHA
NARRAÇÃO: MELINA CARDOSO

13/03/2016

Com o dólar e o euro custando os olhos e a cara, talvez não dê para viajar para a Europa tão cedo. Se servir de consolo, saiba que não é preciso ir a Florença, na Itália, para ver o bíblico “Davi”, esculpido por Michelangelo (1475-1564), nem ir ao Louvre, em Paris, para tirar fotos de “Diana, a Caçadora”, do artista francês Jean-Antoine Houdon (1741-1828).

O inimigo de Golias pode ser contemplado no Tatuapé, zona leste. A figura da deusa romana, por sua vez, encontra-se na praça Pedro Lessa, próxima ao Centro Cultural Correios, no Anhangabaú, região central. E há outras.
Da Aclimação à Lapa, réplicas de estátuas icônicas de diferentes períodos da história da arte, cujas versões originais se encontram em museus europeus, estão expostas em São Paulo ao alcance de uma baldeação.

Segundo inventário da prefeitura, há 12 obras em logradouros públicos classificadas como cópias. Algumas, como a reprodução de “Amalteia e a Cabra de Júpiter”, no parque da Luz, foram importadas.
A maior parte, porém, foi produzida em oficinas do Liceu das Artes e Ofícios de São Paulo na primeira metade do século 20. Para tal, foram utilizadas técnicas de fundição de bronze e modelos de gesso, trazidos da Europa e tirados diretamente das obras que representam.

“Os exemplos serviam não apenas para enfeitar praças, mas para o aprendizado”, afirma Percival Tirapeli, 63, professor da Unesp.

“Aliava-se, assim, a busca por uma arte monumental, considerada necessária aos projetos de uma cidade em expansão”, diz Maria Hirszman, 49, crítica de arte e consultora da Enciclopédia Itaú Cultural.
Fundado em 1873, o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo –que já ocupou o atual prédio da Pinacoteca do Estado e foi dirigido pelo arquiteto Ramos de Azevedo (1851-1928)– tinha como intuito formar mão de obra para o desenvolvimento econômico e cultural de uma São Paulo inspirada em ideais urbanos europeus e financiada pela pujança cafeeira.

Hoje considerados relíquias, os modelos de gesso eram armazenados no galpão do centro cultural do Liceu, que pegou fogo em fevereiro de 2014 em razão de um curto circuito.
À época, o prédio estava com auto de vistoria do Corpo de Bombeiros vencido, e o fogo causou danos a algumas das figuras -são 35 no total, segundo levantamento recente.

O trabalho de recuperação dessas peças teve início em agosto de 2015. A primeira a ser concluída foi a versão em gesso da “Pietá”, de Michelangelo (exposta verdadeiramente em mármore na Basílica de São Pedro, no Vaticano), a um custo de R$ 20 mil.

“Fizemos essa primeira em caráter experimental para depois desenvolver métodos e conferir se a projeção foi correta ou não”, avalia o restaurador Júlio Moraes. As obras do novo centro cultural também foram iniciadas.

O LOUVRE NÃO É AQUI

É claro que, por intempéries, abandono ou vandalismo, algumas dessas réplicas paulistanas estão bastante deterioradas. E não só elas.
Segundo Mariana Falqueiro, 35, chefe da seção técnica de monumentos e obras artísticas do Departamento do Patrimônio Histórico, ligado à Secretaria Municipal de Cultura, das 436 obras de arte catalogadas em inventário público, 10% estão danificadas ou são consideradas desaparecidas.
“Essas obras acabam refletindo uma situação urbana e sofrendo com uma ação social”, avalia Falqueiro. “Acredito que essa cultura de preservação também exija um processo educacional. O trabalho de reparo é caro, e a população deve cobrar mais. Mas a conservação dessas obras de arte também depende muito da apropriação social, de a população saber o que significam. De que elas não sejam entendidas como elementos estranhos na paisagem.”
“A cidade possui grande acervo de obras de arte em parques e praças, mas não tem uma gestão de conservação. A atual política cultural consegue tombar um patrimônio no papel, mas ainda não sabe como zelar ou salvaguarda-lo”, afirma Walter Ramos, 55, coordenador do Instituto Pró-Monumentos, que, desde 2006, desenvolve diversos projetos voltados à preservação e catalogação do acervo em lugares públicos.


RÉPLICA DA ESTÁTUA "DAVI", DE MICHELANGELO, NO TATUAPÉAlberto Rocha/Folhapress

“Davi”
Segundo a Bíblia, Davi derrotou o gigante Golias com uma funda (espécie de estilingue).
Na interpretação do professor de artes da Unesp Percival Tirapeli, a representação esculpida por Michelangelo (1475-1564) traz “o olhar profundo e o momento exato antes de arremessar a pedra por meio da funda [espécie de estilingue], praticamente oculta em sua mão.”
A réplica paulistana do pastor bíblico, feita de bronze e argamassa, foi instalada no interior do estádio do Pacaembu em 1940, ano de inauguração do espaço dedicado à prática de esportes.
Lá permaneceu até 1969, quando, com a construção do “tobogã” e o fim da concha acústica, foi movida para a praça Charles Miller.
Em 1974, a obra foi levada para o Centro Esportivo, Recreativo e Educativo do Trabalhador, na zona leste, em cuja entrada se encontra até hoje.
Em 2002, o então administrador do Pacaembu chegou a reivindicar que a peça voltasse à sua casa original, causando descontentamento em moradores do Tatuapé, que, depois de tanto tempo, já tinham a estátua como parte de sua paisagem. A mudança, porém, acabou por não ser realizada.

Alberto Rocha/Folhapress


Tanguinha
Em
 reportagem da Folha feita naquele ano, a socióloga Fátima Antunes, do Departamento de Patrimônio Histórico da prefeitura, afirma que a imagem do homem nu constrangia frequentadores do estádio. “Nos desfiles de 7 de Setembro cobriam a escultura com uma tanguinha”, conta.

Original: Florença, Itália | Réplica: r. Canuto Abreu, s/nº, Tatuapé, zona leste


RÉPLICA DO GRUPO ESCULTÓRICO "LAOCOONTE" NO PARQUE DO IBIRAPUERAAlberto Rocha/Folhapress

“Laocoonte”
O grupo escultórico “Laocoonte”, datado aproximadamente dos anos 40 a.C, é uma das obras de arte mais marcantes do período helenístico (de 336 a.C a 146 a.C), segundo o professor de artes da Unesp Percival Tirapeli.
A peça, cuja autoria é atribuída aos escultores Agesandro, Atenodoro e Polidoro (da cidade grega de Rodes), representa o momento de dor e angústia de Laocoonte e seus dois filhos ao serem picados por cobras enviadas pelo deus grego Apolo –há versões da história que citam Atena ou Poseidon como os autores da punição.
O severo castigo infligido ao sacerdote decorreu da tentativa deste de convencer os cidadãos de Troia a não aceitar o grande cavalo de madeira dado a eles pelos gregos. Como se sabe, o presente revelou-se uma estratégia para fazer entrar na cidade os soldados inimigos que se escondiam em seu interior.

Alberto Rocha/Folhapress


Quando foi descoberta, no ano de 1506 em Roma, a obra estava incompleta: faltava-lhe o braço direito de Laocoonte. Diz-se que, após debates entre renomados artistas da época, optou-se por reconstituí-la com o braço esticado, dando a Laocoonte ares de heroísmo.
Após muitos anos, o braço original foi encontrado, e a posição correta era dobrada.
Baseada em moldes de gesso comprados pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo no início do século 20, a réplica paulistana de bronze, instalada no parque Ibirapuera, imita a versão com braço esticado.

Original: Museus Vaticanos (Roma, Itália) | Réplica: Parque Ibirapuera

RÉPLICA DE ESTÁTUA "MÍLON DE CROTONA", DE PIERRE PUGET, NA PRAÇA BUENOS AIRESAlberto Rocha/Folhapress
“Mílon de Crotona”
A escultura representa a figura de Mílon, da cidade de Crotona, um exímio atleta olímpico da Antiguidade.
Iniciada em 1671 e finalizada em 1682, a obra, cuja versão original é do francês Pierre Puget (1620-1694), tem 2,70 metros de altura.

Alberto Rocha/Folhapress


Conta a história que, já velho, Mílon, discípulo do matemático Pitágoras, resolveu mostrar sua força partindo ao meio o tronco de uma árvore já parcialmente derrubada.
Ao fazê-lo, suas mãos ficaram presas e ele acabou sendo devorado por lobos –que, na escultura, foram substituídos por um leão.
A peça pode ser interpretada como a representação da vitória do tempo sobre a força, o vigor e o orgulho humanos.

Original: Museu do Louvre (Paris, França) | Réplica: Parque Buenos Aires


RÉPLICA DA OBRA "ESPINÁRIO", NA PRAÇA ALFREDO WEISZFLOG, LAPAAlberto Rocha/Folhapress
“Espinário”
Datada do século 1º a.C, a escultura se destaca pelo gesto humano e trivial que representa: um jovem sentado removendo um espinho de seu pé.

Alberto Rocha/Folhapress


De acordo com Walter Ramos, coordenador do Instituto Pró-Monumentos, a estátua é uma réplica de bronze executada pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo em 1941 com base em uma réplica do Espinário de Roma, que reproduzia o original grego (séc. 2º a.C).

Original: Museus Capitólios (Roma, Itália) | Réplica: EMEI Noemia Ippolito (Praça Alfredo Weisflg, s/n, Lapa)
RÉPLICA DA ESCULTURA "MOISÉS", DE MICHELANGELO, NA GALERIA PRESTES MAIAAlberto Rocha/Folhapress
“Moisés”
A figura original de Moisés, esculpida por Michelangelo em mármore entre os anos de 1513 e 1515, integra um conjunto que compõe o mausoléu do papa Júlio 2º.
O professor de artes da Unesp Percival Tirapeli relembra a lenda de que, ao terminar seu trabalho, diante da perfeição, o artista teria batido no joelho da estátua e perguntado: “Por que não fala?”.

Alberto Rocha/Folhapress


A réplica de bronze produzida pelo Liceu de Artes e Ofícios da cidade de São Paulo na década de 1940 encontra-se escondida ao lado de uma escada da galeria subterrânea Prestes Maia, que liga a praça do Patriarca ao vale do Anhangabaú, no centro.
De acordo com Tirapeli, “nessa peça concentra-se todo um ideal da representação figurativa, ampliado para uma genialidade de inspiração religiosa.”

Original: Basílica de San Pietro in Vincoli (Roma, Itália) | Réplica: Galeria Prestes Maia (centro)

RÉPLICA DE ESCULTURA "MERCÚRIO EM REPOUSO", NA PRAÇA DA REPÚBLICAAlberto Rocha/Folhapress

“Mercúrio em Repouso”
Representante do período helenístico, época em que Alexandre, o Grande, construía seu império do Egito à Índia, a escultura tem autoria atribuída a Lísipo (séc. 4ºa.C), que, segundo o professor de artes visuais da Unesp Percival Tirapeli, “foi considerado o mais profícuo artista da época, tendo produzido 1.500 peças fundidas em bronze”.
Segundo a mitologia greco-romana, a divindade Hermes (Mercúrio, para os romanos) era o mensageiro dos deuses, representado com agilidade e tendo como atributo asas no pé.
Na reproduzida pelo Liceu de Artes e Ofícios e instalada na praça da República, no centro de São Paulo, vê-se um jovem descansando sem sua indumentária.

Alberto Rocha/Folhapress

“Com leve torção no ombro, o corpo projeta-se para a frente enquanto uma das pernas se curva para trás e a outra se alonga, ampliando a espacialidade da escultura, que se apresenta em uma configuração equilibrada entre cheios e vazios, tornando-a visualmente leve.”
Para o especialista, ainda chama a atenção a “complexidade do processo de fundição da peça”, com partes dela tocando-se apenas levemente –uma mão na rocha e outra livre, repousando sobre a coxa, só o calcanhar encostando no solo.”
A posição mais baixa também intensifica a sensação de cansaço da figura, que parece arfar, como denota a musculatura de seu abdômen.
Original: Museu Arqueológico Nacional de Nápoles (Itália)| Réplica: Praça da República
RÉPLICA DE ESTÁTUAS DE TÚMULOS DA FAMÍLIA MÉDICI NA FONTE MILÃO, NA AV. REPÚBLICA DO LÍBANOAlberto Rocha/Folhapress
Fonte Milão
As quatro esculturas que integram a Fonte Milão, situada na praça Cidade de Milão (ao lado do parque Ibirapuera, na av. República do Líbano), são réplicas de esculturas feitas por Michelangelo entre 1526 e 1533 para os túmulos de Giuliano e Lorenzo di Médici, instalados na basílica de San Lorenzo, em Florença, na Itália.
Essas imagens representam o dia, o crepúsculo, a aurora e a noite, que podem ser interpretadas como fases da vida.
Alberto Rocha/Folhapress

De acordo com informações do DPH (Departamento do Patrimônio Histórico), o anúncio de instalação do monumento se deu em 1962, quando a capital paulista e a cidade de Milão firmaram acordo em que se tornaram “cidades irmãs”, mas foi só em 1971 que as obras passaram a integrar o espaço público.
O texto no site da seção técnica de levantamento e pesquisa do DPH ainda acrescenta que, “além de homenagear Milão com uma obra de Florença e realizar uma montagem que não permite recuperar integralmente a proposta do artista [a disposição das figuras humanas é diferente da original], São Paulo também exprimiu certo pudor provinciano ao encobrir o sexo das figuras masculinas com folhas de vinha”.
O local, atualmente degradado, passou por um processo de revitalização em 2004.

Original: Florença (Itália) | Réplica: Praça Cidade de Milão (Av. República do Líbano, zona sul).
RÉPLICA DA PEÇA "AMALTEIA E A CABRA DE JÚPITER", NO PARQUE DA LUZAlberto Rocha/Folhapress
“Amalteia e a Cabra de Júpiter”
A versão original deste grupo escultórico, feito de mármore por Pierre Julien (1731-1804), foi encomendada em 1785 para ser instalada na leiteria de Maria Antonieta (1755-1793), no castelo de Rambouillet, na França.
A peça representa uma história da mitologia greco-romana que tem duas versões.
Em uma delas, que serviu de inspiração para o escultor, Amalteia seria uma ninfa que acolheu Zeus (chamado de Júpiter pelos romanos), único filho não devorado pelo próprio pai, Cronos (ou Saturno), e o alimentou com leite de cabra. Em outra interpretação, Amalteia seria a própria cabra.
Alberto Rocha/Folhapress

A reprodução que hoje está no parque da Luz, em São Paulo, foi importada da França na década de 1910 e inicialmente instalada na praça Oswaldo Cruz, no Paraíso.
Por volta dos anos 1920, ela foi deslocada e de lá e substituída pela escultura do “Índio Pescador”, de Francisco Leopoldo e Silva (1879-1948).

Original: Acervo do Museu do Louvre (Paris, França) | Réplica: Parque da Luz
RÉPLICA DE "DISCÓBOLO", NA ACLIMAÇÃOAlberto Rocha/Folhapress

“Discóbolo”
A réplica feita com argamassa, concreto e bronze é uma cópia de uma peça feita por volta do século 4º a.C pelo escultor grego Naukydes, da cidade de Argos.
Há uma versão exposta no Louvre, que, de acordo com o próprio museu francês, é uma reprodução de uma estátua original perdida.
Alberto Rocha/Folhapress

Diferentemente da versão mais conhecida do atirador de discos, feita pelo escultor grego Míron, no qual a figura do homem já se encontra em movimento de lançamento, esta estátua representa o momento de preparação para a ação.

Original: Museu do Louvre (Paris, França) | Réplica: Praça General Polidoro (Aclimação)
RÉPLICA DE "DIANA, A CAÇADORA", NA PRAÇA PEDRO LESSAAlberto Rocha/Folhapress
“Diana, a Caçadora”
A figura, feita de bronze em 1790 pelo artista francês Jean-Antoine Houdon (1741-1828) causou comoção à época em razão da nudez da personagem retratada, a deusa da caça.
O professor de artes da Unesp Percival Tirapeli chama a atenção para o fato de que, “diferente de outras Dianas, a figura esculpida por Houdon está em sutil movimento. Seu olhar é penetrante e seu gesto é de extrema elegância”.
Alberto Rocha/Folhapress
Alberto Rocha/Folhapress

Ele ainda convida o observador a levar sua atenção à “leveza dos pés e às linhas curvas que nascem nos seios, que se arredondam nas ancas e deslizam pelas coxas até a extremidade dos dedos”.
A réplica paulistana, instalada por volta de 1944, encontra-se bastante degradada, faltando-lhe um braço, o arco e a flecha.

Original: Museu do Louvre (Paris, França) | Réplica: Praça Pedro Lessa (ou “Praça do Correio”, no Anhangabaú)


Reportagem: Bruno B. Soraggi / Design e desenvolvimento: Pilker e Ricardo Ampudia / Fotos:Alberto Rocha / Narração e edição de áudio: Melina Cardoso




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